DEPRESSÃO INFANTIL: entrevista com especialista no tema

 

“A criança se mostra menos aberta às experimentações da vida”

Tatiana Inglez-Mazzarella é psicanalista de crianças e adolescentes, Doutora e Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora e supervisora do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea. É autora do livro Fazer-se herdeiro: a transmissão psíquica entre gerações e organizadora do livro Reflexões Clínicas no contexto do Acolhimento. A especialista conversou com Maternews sobre a depressão infantil.

Como separar, na infância, o que são os sentimentos de tristeza e melancolia da depressão propriamente dita?  

O tema da depressão, assim como outras formas de sofrimento, tem várias possibilidades de abordagens teórico-clínicas. A depressão infantil segue o mesmo caminho, embora seus primeiros estudos tenham sido realizados posteriormente à depressão nos adultos. Para começar a falar em depressão é preciso contextualizar. Vivemos, nos tempos atuais, um número crescente de diagnósticos que chegam a configurar uma epidemia de depressão. Vale, então, perguntar sobre quais os motivos para a configuração desse cenário. 

Se há, por um lado, a imposição de felicidade permanente traduzida numa tentativa de sustentar socialmente uma imagem constante sem tristeza e sem angústia, há por outro, o aumento da medicalização da vida cotidiana. Ou seja, não há no contemporâneo espaço para tristeza e para angústia, afetos que não são passíveis de eliminação em nossas vidas. É a partir deles que desenvolvemos recursos psíquicos para lidar com os desafios e os percalços de nossa existência. Mas como não há lugar para a tristeza atualmente, ela tem sido colocada no rol de “anomalias” transformadas em distúrbio, transtorno ou disfunção biológica. 

Nessa forma de leitura, pode-se potencializar em muito os diagnósticos de depressão ao confundi-los com os estados de tristeza próprios da vida. Sendo assim, faz-se necessário diferenciar estados depressivos e depressões de períodos de tristeza. E dessa forma, nos posicionarmos contra a medicalização e a patologização das crianças com sofrimentos d’alma. 

A tristeza e os períodos depressivos fazem parte da vida de todos nós?

Freud nos fala sobre o trabalho de luto. Não basta que algo ou alguém que amamos muito desapareça para que a gente se separe dele. É preciso um trabalho de processamento da perda, o “trabalho de luto”, a partir do qual nos desligaremos do que foi perdido e, assim, abriremos a possibilidade de vir a amar outra vez. 

Dessa forma a tristeza e até os estados depressivos podem fazer parte desse atravessamento necessário para conseguir lidar com uma perda, e nesse sentido, estão presentes em períodos da vida de todos nós.  

O que configura, então, uma depressão?

É a realização ou não, e até o prolongamento do trabalho de luto, o elemento que nos permite diferenciar a depressão da melancolia. Quando esse trabalho fica capenga, os estados depressivos se alongam e passam a se constituir numa forma de lidar com a vida: configura-se, então, uma depressão. A melancolia, por sua vez, não se confunde com a tristeza. Ela se constitui, por sua vez, em um modo específico de como se lida com a perda: para não nos desligarmos de algo ou alguém que perdemos, vivemos como se essa perda não tivesse acontecido. Dessa forma insistimos em nos manter ligados ao que foi perdido. No lugar da instalação e conclusão do trabalho de luto, que permite processar o que foi perdido, nos misturamos e nos deixamos perder junto com ele. 

Este processo pode acontecer com as crianças?

Na criança, a depressão está relacionada a situações de perda de pessoas ou condições de vida que lhe dão sustentação, sem possibilidade de criar condições para simbolizar a perda sofrida. Sendo assim, vale lembrar que há diferenças quanto às possibilidades de elaboração das perdas de acordo com o momento da vida na qual elas ocorrem (que recursos subjetivos tem essa criança) e a partir da história de vida de cada uma.

Quando se fala de depressão infantil, há mitos e tabus envolvidos. Já quem diga que ela é de difícil identificação. Quais são os sintomas da depressão infantil? 

Podemos levantar alguns elementos para pensar a depressão infantil, mas vale ressaltar que só uma aproximação mais detalhada e não focada apenas no comportamento visível permitirá ter acesso, mais seguro, ao que está se passando. Quando uma criança começa a se mostrar menos aberta às experimentações da vida, mais retraída do que costuma ser, com alterações de sono e de apetite, com dificuldades de relacionamento ou de aprendizagem, quando dá sinais de que algo não vai bem e que ela e seus pais sentem que não têm recursos para lidar com o que se apresenta, é importante buscar ajuda para falar sobre o que se passa.

Mães ou pais que têm ou já tiveram depressão carregam uma probabilidade maior de ter um filho ou filha com depressão?

Temos duas posições para pensar a origem da depressão: uma que se centra nas explicações biológicas, metabólicas e genéticas - a partir do suporte das neurociências - e outra que considera os aspectos psicodinâmicos. Como psicanalista não descarto que possamos ter componentes biológicos. O humano possui um corpo que se constitui a partir de um suporte material, mas que é atravessado e constituído por todas as experiências vividas, a partir do cuidado recebido por outro ser humano. Os bebês nascem incapazes de sobreviver sem que uma outra pessoa se encarregue de cuidar deles por um longo período. Essa condição é chamada por Freud de desamparo primordial. Para dar conta dela, criam-se os laços baseados no investimento e na dependência, o que chamamos de amor. 

O corpo, portanto, está diretamente relacionado aos afetos e às emoções?

Sim, para a psicanálise o conceito de corpo é indissociável do campo da subjetivação e dos afetos. Sofrimentos podem se expressar através do corpo, especialmente nas crianças, a partir de sintomas psicossomáticos. Tenho também pesquisado há anos a transmissão psíquica entre gerações, uma forma de transmissão que não se dá pelos genes, mas que produz efeitos de repetição ao longo das gerações. Introduzo esses aspectos para defender a ideia de que é possível encontrar depressões em mais de uma geração, sem que para isso essa repetição seja explicada por uma via única e direta da ordem biológica e genética.

Desde o começo da pandemia têm se falado do aumento da depressão nas crianças. O que os pais devem observar em seus filhos para saber se há algo errado no comportamento deles?  

A pandemia tem imposto uma série de perdas para adultos e crianças: a falta da escola, do convívio social, um contexto de adoecimentos e mortes, insegurança e incerteza dos adultos em relação às condições de vida. Nesse contexto é muito importante conversar com as crianças sobre o que está se passando. Uma conversa franca, na qual se faça uso de uma linguagem que possa ser compreendida pelas crianças, as ajuda a criar recursos para lidar com os desafios que temos enfrentado. É imprescindível escutar o que as crianças têm a dizer: como se sentem, o que temem, o que gostariam de saber. Para isso, vale tanto prestar atenção no que dizem quanto no que desenham, do que brincam, como reagem ao que se passa no mundo a sua volta. Essas são as outras linguagens pelas quais as crianças nos comunicam sobre o que pensam e sentem. 

Como cuidar de crianças que apresentam um quadro depressivo?

É importante consultar um psicanalista ou psicólogo, que a partir da escuta dos pais e da criança sobre o que está se passando, possa indicar o tratamento terapêutico mais apropriado para a situação. 

As formas de cuidado são pensadas caso a caso. Em situações mais graves, a avaliação psiquiátrica e o uso de medicação podem ser necessárias. Há casos nos quais os pais também necessitam de um espaço de tratamento para eles. Um aspecto que deve ser destacado é o benefício do alinhamento entre os profissionais envolvidos para que trabalhem juntos no cuidado com a criança e sua família.

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